1 de dez. de 2014

de[s]oriente 


I.

desfeita do corpo-exílio
não sei onde termino
quando sinto
o entrelaçar
dos nossos
dedos



II.

espelho: o brilho
escuro
das frestas estreitas
que me olham
sempre
que nos damos
as mãos

26 de mai. de 2014

I

É bom que seja assim, Dionísio, que não venhas.
Voz e vento apenas
Das coisas do lá fora

E sozinha supor
Que se estivesses dentro

Essa voz importante e esse vento
Das ramagens de fora

Eu jamais ouviria. Atento
Meu ouvido escutaria
O sumo do teu canto.
Que não venhas, Dionísio.
Porque é melhor sonhar tua rudeza
E sorver reconquista a cada noite
Pensando: amanhã sim, virá.
E o tempo de amanhã será riqueza:
A cada noite, eu Ariana, preparando
Aroma e corpo.
E o verso a cada noite
Se fazendo de tua sábia ausência.


ODE DESCONTÍNUA E REMOTA PARA FLAUTA E OBOÉ. DE ARIANA PARA DIONÍSIO, da Hilda Hilst, na página 51 do livro Júbilo, memória, noviciado da paixão

20 de mai. de 2014

inicia a busca entre as formigas e as flores, no matagal recém-carpido dos terrenos do ócio. procura palavras na ferrugem dos pregos usados, no metal torto, na força que resistiu às marteladas, na história das molduras dos quadros agora despendurados. encontra a absurdez das rimas nas paisagens antigas feitas às pinceladas, nas cores das falsas janelas de uma vida sempre imóvel. busca a inspiração na escuridão e no podre, no triste e deteriorado. encontra frases no alimento dos vermes, em tudo aquilo que precisa da morte estúpida para provar que viveu.

12 de mar. de 2014

Cartas de Amor de Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz


Quando adquiri o livro não esperava Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos ou Bernardo Soares; não esperava a densidade do poeta ou de algum dos seus heterônimos. Esperava, sim, um livro que tivesse pelo menos metade das páginas escritas por Fernando Pessoa. Um livro que fosse o que Cartas de Amor de Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz não é.
Dos 185 documentos reunidos no volume, apenas 51 foram escritos pelo poeta; e são cartas muito curtas - se comparadas ao abundante e extenso palavrório da Ofélia, algumas delas não passam de pequenos bilhetes sem grande intensidade.
Enquanto Ofélia relata seus dias e escreve sobre os acontecimentos do trabalho, da casa e da família, Pessoa limita-se a respondê-la, quase sempre depois de repetidos pedidos de resposta. Pessoa às vezes escreve sobre seus planos literários, sobre a necessidade de produzir literatura, enquanto Ofélia faz inúmeras tentativas de seduzi-lo para o casamento e trazê-lo para a vida a dois. Ofélia vislumbra a morada para o casal e diz que se contentaria com os pequenos confortos de uma vida modesta, enquanto Pessoa planeja isolar-se do mundo para escrever. As cartas mostram uma Ofélia insistente, quase enfadonha, e um Pessoa sóbrio e racional que faz breves, mas deliciosas, incursões pela paixão e pelo desejo.
Ainda que Cartas de Amor de Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz seja um livro diferente do que eu imaginava, foi divertido encontrar, mesmo que em pouquíssimas páginas, um Fernando Pessoa quase romântico, um grande poeta escrevendo como muitos outros (e)namorados, utilizando diminutivos, apelidos e uma linguagem comum a muitos outros pares.


Fui cativada pelo inesperado na leitura que a perseverança de Ofélia embalou. Não é sempre que encontramos um documento que retrate um grande poeta - se não o maior dos nossos poetas -  encerrando um texto com tantos jinhos assim.


Cartas de Amor de Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz - edição de Manuela Parreira da Silva - 368 páginas - Assírio & Alvim

20 de fev. de 2014

"Dançar ultrapassa qualquer obstáculo da vida"


sou naturalmente desesperançosa (ou realista?) em relação ao que a maioria das pessoas faz da dança, sobretudo nas chamadas academias de dança, onde perpetuam-se ideais inatingíveis via caminhos mal executados - que acabam por gerar insatisfação - e transmitem-se sequências de movimentos sem nenhum propósito, muitas vezes nem sequer o prazer estético proposto pela técnica. dançar é humano. como diz Klauss Vianna, "enquanto você não tem um ser humano você não tem um bailarino", e o professor de dança "é um parteiro que tira de dentro do aluno aquilo que ele tem para dar". somos todos corpos dançantes. pensar o corpo e a dança não deve ser privilégio daqueles que almejam as luzes do palco ou o mais alto grand jeté.

abaixo, um vídeo lindo, com depoimentos de gentes lindas - tem até a Renée Gumiel, um dos meus grandes amores - com um tributo a um grande bailarino que nos convida a (re)pensar a dança.
agradeço ao Vitor Daneu por compartilhar o presente.







14 de fev. de 2014


... o que não nos traz exaltação e alegria é sempre profundo e mais real. 
A solidão não é um clima que se possa compensar ou destruir. Livros, imagens, o espírito das criaturas mortas, não dão qualquer conforto, apenas distraem. Estar realmente só não comporta uma distracção; é melhor mergulharmos na paz terrível de estar só, sem um único desejo, nem que ele signifique uma virtude. De resto, os livros que eu escolheria num momento de mais funda solidão, por exemplo, A morte de Ivan Ilitch, serviria não para amenizar, mas para agravar mais. Creio que não é pessimismo o facto de aceitar o pior.


Nas páginas 62 e 63 do Caderno de Significados, da Agustina Bessa-Luís

29 de jan. de 2014

Tuitéria


Afetuar é como abraçar inteiro até desfazer o nó.

***
Afetuar a acontessência das pessoas e das coisas todas.

***
***

T R A N S F O R (A) M A R

***
Reamar é ser surpreendida pela felicidade alegre de um amor antigo.

***
***

Só ganho corpo quando encontro um deslugar.

***
Um corpo em movimento é um corpo pulsante: dançar é [en]tornar-se coração.


26 de jan. de 2014

Primavera 


Provisiono dedos, tato e saliva
Dispenso pente e espelho
A camisa é manchada
O hálito e o enxágue bucal
A barba; o eu não pensa - é acaso, externo - só para quem vê.
Quando o toque:
ferro de passar
calça
sapato
camisa florida.



Do BFM

22 de jan. de 2014

Sublinhamento

Talvez não tenha José dito isto, mas escrevo-o eu agora: graças aos livros e às pessoas que eles contêm, podemos evitar a sensação de orfandade e solidão que tantas vezes nos espreita. Sabendo dos outros que foram, de um passado que por abrir um livro se torna presente, podemos reconhecer-nos a nós próprios, ao mesmo tempo que nos situamos numa comunidade de conhecimento que nos justifica e dignifica.


Excerto do Diário de Viagem de Pilar (del Río), no quarto volume dos Cadernos de Lanzarote, de José Saramago

4 de jan. de 2014

o silêncio, você sabe, é arma fatal e buraco infinito; uma fenda profunda que acumula sensações multiplicadas pelo vazio. o amor desexiste quando absorvido pelo vácuo das não-palavras. nos recônditos do vão silente, as mágoas enraizadas aprendem a verdejar. não precisamos de tranquilidade ou calma para cultivar jardins de maus sentimentos. há dores belíssimas, repletas de luz e cor, capazes de metatastasear em todos os interiores do caos.


engana-se quem pensa que o abandono é cinza. somos capazes de colher decepções inconsoláveis nos canteiros do corpo azul.